terça-feira, 24 de dezembro de 2013

Sinos de contradição?

Transcorridos 40 dias da Noite Santa, ao ser Jesus levado para a apresentação no Templo, Simeão tomou-O nos braços, exclamando: “Eis que este Menino está destinado a ser uma causa de queda e de soerguimento para muitos homens em Israel. Ele será um sinal de contradição” (Lc 2, 34).
Exímio na virtude da esperança, o profeta alcançara avançada idade ansiando por aquele momento. Seu coração exultava ao ver diante de si a Luz enviada para iluminar as nações (cf. Lc 2, 32-33). Entretanto, em seguida ele se volta para a Mãe, dizendo-lhe: “Uma espada traspassará a tua alma e assim serão revelados os pensamentos de muitos corações” (Lc 2, 34).
Jesus há de ser, com efeito, o Sinal de Contradição, porque em face do Verbo encarnado ninguém pode permanecer neutro: é na aceitação ou rejeição de sua Pessoa que os homens vão selar seu destino eterno.
E os acontecimentos na Palestina em breve confirmariam a profecia de Simeão: a sangrenta e cruel matança dos Santos Inocentes, a mando de Herodes, obrigando a Sagrada Família a fugir para o Egito, onde os ídolos pagãos caíram por terra à chegada do verdadeiro Deus.
Como entender, então, o anúncio de “paz na Terra” feito aos pastores pelos Anjos? Anúncio, aliás, que incluía uma restrição muitas vezes esquecida ou não levada na devida conta: “aos homens amados por Deus” (Lc 2, 14). Não se trata, portanto, de promessa de uma paz incondicional.
A explicação para esse paradoxo encontramo-la no prólogo do Evangelho de São João. Jesus “era a Luz verdadeira que a todos ilumina. Ela estava no mundo e o mundo foi feito por meio d’Ela, mas o mundo não a reconheceu. Ela veio para o que era seu, mas os seus não A acolheram” (Jo 1, 9-11).
A oposição entre os filhos das trevas e os discípulos do Divino Mestre se verificará ao longo da História, dando origem a perseguições, lutas e martírios padecidos pelos que acolherem a Luz. Pois se, de um lado, foi prometida a paz aos amados por Deus, de outro, devem estes estar dispostos a enfrentar contrariedades pela fidelidade ao Verbo encarnado. Porque a verdadeira paz é a tranquilidade da ordem e não uma harmonia aparente sob a qual pode se disfarçar o pecado.

Nessa perspectiva, os sinos que proclamam neste Natal o nascimento do Menino Jesus bem podem ser aqueles que anunciam o advento de um Rei de Contradição. Que graças o Divino Infante reserva hoje para a humanidade? Haverá em breve um tempo de harmonia e de paz? Ou virá um período de guerras e de perseguições aos que acolherem a Luz? Seja o que for, tudo o que vier da parte de Deus será para o nosso bem e nossa santificação. E a nossa esperança, como a de Simeão, não deve repousar nos fugazes tesouros desta terra, mas sim nos do Céu!

sábado, 19 de outubro de 2013

A caridade hoje, nos antigos tempos e no futuro

Qão numerosas, ó Senhor, são vossas obras, e quanta sabedoria em todas elas!” (Sl 103, 24) — exclama o Salmista, pervadido de admiração, ao contemplar a incomensurável variedade de criaturas que enchem o universo.
Nos esplendores da aurora, varando as nuvens, os raios vitoriosos do Sol derramam sua generosa claridade sobre a vastidão da Terra. A luz desce as montanhas, atinge as encostas e vales, fecunda plantações, suscita o concerto das aves e desperta os rebanhos. Dir-se-ia que o astro rei tem pressa em voltar a espargir seus benefícios, e que a Terra, há pouco escura, cheia de saudades, exulta afinal pelo reencontro.
Por sua vez, no decurso das estações e dos tempos, o mundo vegetal se apressa em distribuir suas riquezas sem conta, e parece rejubilar-se em esbanjá-las. Trigais dourados e plantios infindos para o homem, pastagens copiosas para o gado, frutos em profusão para os pássaros, abundância para todos. A generosidade se apresenta também como a regra desse universo vivo de raízes, ervas e troncos, que o solo dadivoso se compraz em sustentar e fortalecer.
Quanta prodigalidade! A natureza se revela como imensa sinfonia, na qual seres irracionais ou inanimados, cumprindo perenes desígnios do Criador, multiplicam os favores e persistem na doação generosa, ou são beneficiados e recebem de outros o necessário para sua subsistência. Inúmeras lições poderíamos auferir de tantas maravilhas, mas, sem dúvida, há uma que salta aos olhos do bom observador: a ordem da criação resplandece diante de nós como magnífico espelho da CARIDADE.
Caridade! Virtude desconhecida no paganismo e apenas vislumbrada no Antigo Testamento, desceu à Terra com o Verbo de Deus e se difundiu na humanidade como divino perfume do próprio Jesus Cristo. É por ela que todos se harmonizam: grandes e pequenos, poderosos e desvalidos. Movidos pela caridade, incontáveis homens e mulheres mais dotados de fortuna transformaram-se, ao longo da História, em verdadeiros anjos de proteção e dedicação aos pobres e miseráveis. Pelo impulso da caridade, os corações e as bolsas se abriram: edificaram-se hospitais, alimentos foram distribuídos, dores aliviadas, lágrimas enxugadas e corpos gélidos aquecidos. Quão belos espetáculos a caridade protagonizou no relacionamento entre ricos e pobres!
O que seria dos pobres, se ricos não houvesse para consolá-los com sua ajuda? E, se não existissem os pobres, como poderiam os ricos praticar esse amor de misericórdia, do qual o Sagrado Coração de Jesus é a fornalha ardente?
Caridade! Regra perfeita de uma sociedade verdadeiramente conforme ao Evangelho, na qual os ricos, sem terem de renunciar à sua riqueza, são irmanados em Cristo com os pobres; e estes, mesmo não se enriquecendo, veem naqueles a mão dadivosa de Deus. Nessa sociedade germinará e florescerá, até o fim dos tempos, o ideal descrito pelo Apóstolo:
A caridade é paciente, a caridade é bondosa, não tem inveja. A caridade não é orgulhosa, não é arrogante nem escandalosa, não busca os seus próprios interesses, não se irrita, não guarda rancor. [...] Tudo desculpa, tudo crê, tudo espera, tudo suporta. A caridade jamais acabará” (I Cor 13, 4-8).

terça-feira, 20 de agosto de 2013

Quem precisa do Médico?

Enorme sensação haveria no mundo, se alguém demonstrasse que as técnicas de filmagem já existiam nos tempos evangélicos. E ainda maior seria o pasmo se tal afirmação fosse corroborada por uma descoberta inaudita: filmes autênticos da vida de Jesus.
O maravilhoso achado produziria um encanto indescritível, mas também… algumas surpresas.
Com efeito, quem se habituou a considerar a figura do Salvador segundo preconceitos arraigados e visualizações unilaterais, sentir-se-ia talvez desconcertado. E assim poderia exprimir uma de suas objeções:
— Mas que público heterogêneo, verdadeiro universo de classes e raças desfila diante d’Ele para ser beneficiado! Agora, por exemplo, depois de curar um infeliz leproso, Ele se detém para ouvir com solicitude o pedido de um oficial romano, símbolo vivo da lei do mais forte, e, além disso, endinheirado! E, o que faz Ele naquela nobre mansão, participando de um funeral de luxo? Ah! É a morada de um importante personagem, onde Ele vai ressuscitar a menina que acaba de morrer. Está bem, mas… por que vai então repousar nessa outra sala, tão fina e arranjada? De novo, é uma casa de ricos! Bom! Vai jantar com três irmãos, família conhecida e muito visitada, que o recebe com especial afeto, é verdade. Mas uma das irmãs enlouqueceu de repente! Esbanja dinheiro com perfumes, apenas para agradá-Lo, e Ele ainda toma a defesa da desvairada! Oh! E eu que imaginava Jesus cercado só de maltrapilhos, protetor somente dos mendigos, advogado apenas dos marginalizados...
— E a túnica d’Ele? Inconsútil, de primeira categoria! Chama a atenção até de ignorantes, como os legionários de Pilatos! Não poderia Ele apresentar-Se com mais simplicidade?
— O que dizer de suas parábolas? Nenhuma classe se encontra nelas especialmente contemplada, nem pobres nem ricos, nobres ou plebeus. Vemos reis partindo para a guerra, pastores, vinhateiros, donas de casa, miliardários que pagam seus empregados de modo exagerado ou lhes perdoam dívidas astronômicas, monarcas que organizam festas de casamentos, potentados no inferno, virgens loucas ou previdentes…
Assim, quantas outras surpresas causaria esse hipotético filme da vida de nosso Salvador! Entretanto, os Evangelhos narram pormenorizadamente todos esses episódios, que revelam de modo insofismável a universalidade da ação santificadora de Jesus. Se tivéssemos a imensa felicidade de presenciá-los, apenas uma atitude seria aceitável e digna de verdadeiros seguidores d’Ele: cair de joelhos aos seus pés e exclamar, transidos de amor e adoração:
— Senhor, bem dissestes que “os sãos não precisam de médico, mas os enfermos” (Mc 2, 17). Enfermos de espírito existem em todas as classes e todos os meios. Quem poderia declarar-se saudável diante de Vós? Apenas vossa Mãe Santíssima, pois quisestes adorná-La com todas as plenitudes da inocência e da santidade. Mas todos os demais imploram vossos remédios, divino Médico das almas. E quem ousaria desprezar os pobres e pequenos, amados por Vós com tanta ternura? Quem se atreveria a excluir os ricos e condená-los como maus, se também a eles oferecestes vosso carinho? Não haja mais fronteiras para a caridade entre uns e outros! Tenham os ricos a alegria e a generosidade sempre renovada de ajudar os pobres, e recebam estes o consolo incansável daqueles. Queremos imitar-Vos, Senhor, em vosso zelo universal e em vosso amor sem fronteiras.

Extraído da Revista Arautos do Evangelho – agosto 2013

segunda-feira, 25 de março de 2013

A solenidade da Anunciação



Durante nove meses, quis Nosso Senhor Jesus Cristo viver no claustro materno de Maria. Ele, o Homem-Deus, a Quem todas as coisas obedecem, ao Qual nem o Céu nem a Terra podem abarcar, deliberou colocar-Se, enquanto criatura, na mais completa dependência de sua Mãe terrena.

Essa sujeição miraculosa e insondável é motivo de reflexão para todos os fiéis, mas, sobretudo, para aqueles que se entregaram a Maria como escravos, segundo a devoção ensinada por São Luís Grignion de Montfort. Pois essa forma de entrega a Jesus pelas mãos da Santíssima Virgem foi estabelecida pelo célebre missionário francês “para honrar e imitar a dependência à qual o Verbo Encarnado quis Se submeter por amor a nós” (O segredo de Maria, n.63).

Em contraste com essas cogitações, compreende-se melhor quão insensata é a desobediência das criaturas ao Criador, e que consequências terríveis não pode deixar de ter. Hoje, sob a capa de uma pretensa liberdade, que não passa de funesta escravidão ao pecado e às paixões desordenadas, uma multidão de homens se ufana em escolher o caminho da desobediência aos Mandamentos e conselhos do Senhor. E, cabe perguntar, não será essa uma das causas mais profundas da rápida deterioração do mundo atual?

Consagrados a Maria segundo o método de São Luís Maria Grignion de Montfort, os Arautos do Evangelho olham para a solenidade da Anunciação como sendo também a festa daqueles que se entregam docilmente a seu Criador por intermédio de Nossa Senhora. E preparam-se para ela renovando sua sujeição a Maria, à imitação do ato de obediência do próprio Deus.

O espírito de humildade da Santíssima Virgem em face desse mistério toma, nessa perspectiva, uma dimensão insondável. Ao Lhe ser anunciado que o Verbo ia Se encarnar n’Ela, sua reação não se manifestou num hino de vanglória, mas em termos humilíssimos: “Eis a escrava do Senhor, faça-se em Mim segundo a tua palavra” (Lc 1, 38).

Nessa expressão que deu início à Redenção do gênero humano estava incluída, porém, uma perplexidade: “Ele deseja meu consentimento para que se torne realidade esta situação incompreensível: que Eu tenha poder sobre Ele e Ele dependa de Mim em tudo. Por obediência à sua vontade, aceitarei”.

Desse ponto de vista, resplandece de modo especial a atitude de Maria dizendo-Se escrava de Deus no momento em que o próprio Criador queria, por assim dizer, fazer um ato enorme de servidão, de dependência, digamos ousadamente, de escravidão em relação a Ela. A solenidade da Anunciação é, portanto, uma ocasião para celebrar também o espírito de obediência, o amor à hierarquia, à ordem e a sujeição a Deus e à sua Santa Igreja. 

sábado, 19 de janeiro de 2013

Contemplação e eficiência

Cada época possui seus mitos. A nossa, dominada pelo materialismo, cultua a eficiência, personificada pela figura do businessman bem-sucedido, cujo dinamismo e capacidade de ação geram e multiplicam um dos produtos mais adorados da civilização moderna, ou seja, o dinheiro.
Esse mito torna árdua a compreensão da superioridade e o próprio valor da contemplação. Entretanto, esta é a finalidade última do ser humano, pois a salvação eterna se cifra em contemplar a Deus face a face.
São Tomás de Aquino, com sua costumeira sabedoria, levanta o problema sobre qual das vidas é a mais excelente: a ativa ou a contemplativa? Quantos de nossos contemporâneos responderiam ser a vida ativa... Pois, afinal, precisa haver quem produza! São Tomás não nega a validade desse argumento: “Em determinados casos, é preferível escolher a vida ativa, por causa das necessidades da vida presente. Até o Filósofo o reconhece, quando afirma: ‘Filosofar é melhor do que ganhar dinheiro. Mas, para quem passa necessidade, ganhar dinheiro é preferível’” (Suma Teológica, IIII q. 182 a. 1 resp).
Porém, afirma ser a vida contemplativa, por sua natureza, mais excelente que a ativa; e o demonstra com nove argumentos, como por exemplo: “Porque a vida contemplativa se entrega às coisas de Deus, ao passo que a vida ativa se aplica às coisas humanas. [...] Porque há maior alegria na vida contemplativa que na vida ativa. Assim diz Agostinho: ‘Marta se agitava; Maria se deleitava’. [...] Maria escolheu a melhor parte que não lhe será tirada” (Idem, ibidem).
O mundo prestigia os eficientes, mas a influência sobre os acontecimentos cabe às almas contemplativas, pelo fato de possuírem o cetro da História: a oração. Por meio desta, elas movem a Deus, o qual é o verdadeiro motor da História. Quem mais nos convencerá a esse respeito é o exemplo de uma jovem virgem da cidade de Nazaré. Nas silenciosas súplicas de Seu coração contemplativo, obteve do Pai a vinda do Messias: “Deus Pai só deu ao mundo seu Unigênito por Maria. Suspiraram os patriarcas e pedidos insistentes fizeram os profetas e os santos da Lei Antiga durante quatro milênios, mas só Maria o mereceu e alcançou graça diante de Deus, pela força de suas orações e pela sublimidade de suas virtudes”— ensina São Luís de Montfort (Traitè de la vraie dévotion à la Sainte Vierge, n. 16).
Naquela época, o centro dos acontecimentos era a Roma pagã, onde não faltavam homens eficientes. Mas nem a ciência de seus sábios, nem a genialidade de seus Césares foram capazes de resolver os graves problemas do Império Romano: corrupção do Estado, desagregação da família, dissolução dos costumes, guerras constantes, idolatria, desprezo pela vida, escravatura, etc. Foi uma virgem contemplativa que obteve de Deus a Encarnação do Verbo e a Redenção do gênero humano, com a qual se iniciou, sob o signo da Cruz, uma nova era histórica.
Quem sabe se, para a solução da crise hodierna, cuja raiz é essencialmente moral, serão insuficientes, talvez até ineficazes, fórmulas puramente humanas. Uma vez mais, torna-se imprescindível mover o coração de Deus: “Por meio de Maria começou a salvação do mundo e é por Maria que deve ser consumada”, afirma São Luís de Montfort (Idem, n. 48).