sexta-feira, 11 de dezembro de 2015

Duas visualizações, duas eternidades... uma só Alegria!

É noite, noite fria, noite de inverno. Na cidade agora deserta, as poucas réstias de luz provêm do aconchegado interior das casas, filtradas por portas e janelas tão bem fechadas quanto possível à pobreza do lugar.
E pelas ruas vazias vagueia um casal cansado, à busca de hospedagem... Aparentemente, nada há de mais banal que esta cena.
Contudo, a jovem grávida está acompanhada de Anjos belíssimos e invisíveis, enquanto os Céus se debruçam embevecidos sobre Ela: é a Rainha do universo, “vestida de sol” e “coroada de doze estrelas” (Ap 12, 1), carregando no seu seio puríssimo — por obra de um milagre, misterioso e altíssimo — o Sol salvador que, instantes depois, inundaria a Terra e a História com sua luz redentora.
Esta maravilha, entretanto, os olhos humanos não a alcançam, porquanto os materialistas daquele tempo recusaram hospedagem a esta luz: para ela “não havia lugar” (Lc 2, 7) porque seus corações não eram dignos dela. E, nesta noite, Belém prenunciava Jerusalém, que não soube reconhecer o tempo em que fora visitada (cf. Lc 19, 44), nem quem podia trazer-lhe a paz (cf. Lc 19, 42), e acabou por crucificar o Senhor da glória a ela enviado (cf. I Cor 2, 8).
Assim, há os que, olhando para o Rei dos reis feito Menino, ofuscados pela aparência humilde e despojada, veem n’Ele apenas o filho do carpinteiro de Nazaré. Contudo, há também quem, olhando para o pobre, mas majestoso, filho de José, extasiado pela sua inocência e sabedoria, reconhece n’Ele o Senhor dos senhores. O mesmo Menino, vestindo as mesmas roupas, apresentando o mesmo porte, utilizando a mesma linguagem, suscita entretanto a seu respeito duas visualizações diversas, antagônicas e — quantas vezes! — em luta.
Na raiz mais profunda dessa adversidade está o embate entre dois campos incompatíveis: a cidade do mundo e a cidade de Deus, como tão bem descreve Santo Agostinho. E é em função dessa oposição que o divino Bebê de Belém, Juiz do universo, colocará uns à sua direita e outros à esquerda (cf. Mt 25, 33).
Assim, duas visualizações, duas mentalidades, dois mundos, duas eternidades se confrontam continuamente, quase sempre de modo velado, e Deus permite que as almas pertencentes a ambos os lados cresçam juntas (cf. Mt 13, 24-30), pois não há glória sem vitória, e não há vitória sem luta.

Pelos olhos da fé, vemos nas ruas de Belém caminhar uma Virgem, suave e recolhida. N’Ela, esperando para nascer, o Criador e Redentor — que tudo sabe e tudo pode — tem em suas mãos nossa felicidade e nossa paz. Sua chegada traz para nós a alegria do Natal, como mero prenúncio do gáudio da salvação eterna e definitiva. Ele nos convida constantemente a conquistar a glória celeste, antegozada ainda nesta Terra, pela alegria sincera da alma, por quem caminha seguindo seus sagrados passos. Alegria que entrava no mundo, no rastro de dois humildes viajantes que, rejeitados, cruzavam uma pequenina cidade, em fria noite de inverno.

sexta-feira, 9 de outubro de 2015

Como alcançar uma sociedade feliz?

A primeira instituição humana não foi governamental, nem econômica, nem mesmo laboral. Criado Adão, e formada Eva de seu costado, constituíram eles a primeira família humana, princípio e causa de todas as demais. Desde a origem, como reafirmado posteriormente pelo Salvador (cf. Mc 10, 6-8), Deus criou o homem e a mulher, os quais, unindo-se segundo um desígnio eterno de sua sabedoria, “são uma só carne” (Gn 2, 24).
A solidez e estabilidade desta união — cuja sublimidade foi elevada a Sacramento pelo próprio Cristo como Fundador da Igreja — se encontram radicadas no fato de ser ela operada pelo próprio Deus, embora ministrada pelos esposos: a iniciativa é humana, mas o resultado é divino, porquanto o homem não tem poder para anulá-lo. Esta realidade foi sancionada pelo Redentor com uma ordem clara: “não separe o homem o que Deus uniu” (Mt 19, 6).
Foi este um dos elementos que opuseram-No aos fariseus: muito preocupados pelos aspectos humanos, e pouco interessados nos desígnios divinos, buscavam estes distorcer os princípios mosaicos para adequar a Religião às suas paixões. Jesus Cristo, contudo, não deu a menor margem às suas ânsias; obstinados e impenitentes, com esta e outras atitudes, os fariseus se empurraram voluntariamente para a margem da História...
Do casamento concebido segundo a visão cristã, surgiram as famílias que deram origem às sociedades inspiradas no Evangelho, destinadas a fazer florescer os frutos do Espírito: “caridade, alegria, paz, paciência, afabilidade, bondade, fidelidade, brandura, temperança” (Gal 5, 22-23). Com muita organicidade, o homem conhecia uma mulher e, motivados pela caridade, resolviam casar-se; enfrentavam dificuldades, mas perseveravam juntos. Passavam-se os anos, e ambos se davam muito bem! Assim perduraram as sociedades, durante vinte séculos...
Porém, surgiram o divórcio e formas cada vez mais esdrúxulas de “famílias”; e os problemas, em vez de diminuir, aumentaram... Assim, chegamos a uma situação na qual a família sofre duma crise global, até constituir-se hoje uma verdadeira encruzilhada na História. Com efeito, de modo quase cíclico, a dureza de coração que Jesus denunciara nos fariseus (cf. Mc 10, 5) torna uma e outra vez a manifestar-se: com pretextos mais ou menos semelhantes, pretendem sempre retorcer a verdade de modo a julgar-se no direito de exigir de Deus que justifique os efeitos das paixões desregradas. Onde encontrar novamente o remédio para este mal antigo?

Para um mesmo problema, vale a mesma solução. Ontem, como hoje e sempre, o homem nesta Terra nunca poderá evitar a dor. O segredo da felicidade, portanto, não se encontra em não sofrer, mas em como enfrentar o sofrimento. A felicidade da família bem constituída se firma na Rocha sobre a qual foi edificada (cf. Lc 6, 48); enquanto ambos os esposos se encontram abrasados no amor a Deus, não temem nem vacilam; mesmo quando sofrem, estão cheios de alegria espiritual. A chave da felicidade de determinada sociedade consiste, pois, em estar formada por famílias cujos cônjuges anseiam pela santidade. 

quarta-feira, 24 de junho de 2015

Misericórdia infinita

Realmente, não há solução. Todos os recursos foram experimentados, e o resultado continua desastroso, desencorajando os que ainda mantinham restos de esperança.
Mas, de quem falamos? Qual a situação? A resposta é simples: trata-se da humanidade.
Ao analisar com objetividade a História, vemo-la como longa sequência de desatinos e fracassos, à maneira de uma estrada péssima, coalhada de obstáculos e catástrofes, cada qual mais terrível e assustadora que a anterior. Desolados, verificamos que a culpa de tais desgraças recai sobre os próprios viajantes, pois acumularam ao longo do trajeto os destroços de sua imperícia, descuido ou maldade, para servirem de tropeço aos próximos infelizes que, por sua vez, ultrapassam os antecessores nesse campeonato de horror.
Em contrapartida, que imensa profusão de carinho! Com solicitude incansável o Criador acompanhou o gênero humano ao longo das eras e, sobretudo, atingida a “plenitude dos tempos” (Gal 4, 4), ofereceu-lhe os méritos incalculáveis da Redenção operada pelo próprio Filho de Deus. Mas o desdém, a ingratidão e a revolta parecem ser as únicas respostas a essa abundância ilimitada, a esse esbanjar ininterrupto de amor.
Assim chegamos ao século XXI — tão jovem e já tão desvairado —, nascido no mesmo abismo onde o século XX deu o último suspiro. A Terra não passa de um covil de feras, selva de ódios e praça de loucuras.
À vista disso, dizemos: de fato, não tem conserto. No entanto, quem assim pensasse cometeria grave omissão.
Com efeito, se raciocinarmos com critérios exclusivamente humanos, poderemos concluir que a situação é irremediável e o desastre definitivo. Porém, faltar-nos-ão dados de valor primordial, cuja amplitude somente a Fé consegue descortinar.
Lembremos que a bondade de Deus, atributo do qual Ele jamais poderá separar-Se, não é apenas incomensurável, mas infinita. Ora, na manifestação de tal misericórdia, a Segunda Pessoa da Santíssima Trindade agiu como alguém que, desejando ultrapassar-Se a Si mesmo, sai do âmbito de sua família — onde goza das excelências de um convívio feito de requintada distinção e inefável doçura — e lança-se à procura dos infelizes e abandonados, para tornar-Se um com eles e assim elevá-los à sublimidade de sua nobre estirpe. “Sendo de condição divina”, decidiu “assemelhar-Se aos homens” (cf. Fl 2, 7) e tornou-os “semelhantes a Deus” (I Jo 3, 2). Deus então olhou para a humanidade e encontrou nela traços de sua própria “família”.

Pois bem, será Ele quem estabelecerá limites a essa misericórdia demasiadamente grande? Não! Ainda que o mundo role por despenhadeiros mais terríveis dos que até agora se sucederam, tudo terá solução. E nós, na ufania de verdadeiros familiares do Verbo Encarnado, fazemos diante d’Ele nossa proclamação de confiança: “Ó Sagrado Coração de Jesus, pleno de amor e bondade! Se o mundo atual se encontra mergulhado em tais profundezas, qual será a surpresa que nos prepara vossa clemência? Apressai-Vos em intervir, Senhor! E, por meio de vossa Mãe Santíssima, fazei desse extremo de miséria mero pretexto para a manifestação de novas maravilhas, nas infinitas altitudes de vossa misericórdia!

domingo, 17 de maio de 2015

Pentecostes


Pouco antes da Paixão, quando preparava seus discípulos para os acontecimentos vindouros, Jesus lhes disse que haveria de deixá-los e ir para o Pai: “ Agora vou para Aquele que Me enviou”, uma referência não à sua morte, mas à Ascensão. Diante da reação consternada de seus ouvintes, Ele quis consolá-los e dar a explicação de sua partida: “Convém a vós que Eu vá! Porque, se Eu não for, o Paráclito não virá a vós; mas se Eu for, vo-Lo enviarei” (Jo 16, 5 e 7).
Na história da salvação, após as intervenções do Pai e do Filho, chegara o momento de o Espírito Consolador derramar-Se sobre os fiéis, para fortalecê-los na Fé e abrasar-lhes a alma. Iguais em tudo e por tudo e formando um só Deus — um Mistério da Fé, fora do alcance da razão humana —, cada Pessoa divina manifesta um atributo próprio: o Pai, “do qual são todas as coisas”, o Filho, “mediante o qual são todas as coisas”, e o Espírito Santo, “em Quem são todas as coisas” (Catecismo da Igreja Católica, nº 258).
O Paráclito é o Espírito de toda a graça, como rezamos na Ladainha com a qual O louvamos. Abundantes graças eram indispensáveis para os Apóstolos conquistarem as almas, e Ele as concederia: a prática da perfeição, a luz da inteligência, a inspiração dos profetas, a pureza das virgens.
Em Pentecostes, Ele chegou com um ribombo, adentrando os corações. A transformação dos Apóstolos foi imediata, radical e eficaz. Apresentaram-se destemidamente em público e, pela voz do primeiro Papa, tocaram o mais profundo dos ouvintes: só naquele dia, cerca de três mil pessoas foram convertidas e batizadas. Por tal razão, o dia de Pentecostes é muitas vezes considerado a data na qual nasceu a Igreja.
Santificador e guia da Igreja Católica — continua a Ladainha. A santa Igreja de Deus não é somente imortal; ela é também santa por ser vivificada pelo Espírito Santo. Por mais que falhas humanas possam nela ocorrer, em nada poderão diminuir essa santidade. Pela mesma razão, é a Igreja que santifica, por meio dos Sacramentos, todos aqueles que dignamente os recebem.

O Paráclito faz brilhar a verdade aos nossos olhos, concede-nos a sabedoria, comunica-nos um santo temor, dá-nos o dom das virtudes, traz-nos a verdadeira paz. Estes cinco títulos da Ladainha do Espírito Santo não parecem referir-se àquilo de que o nosso mundo mais carece? Se Diógenes percorresse hoje a Terra com sua lâmpada, teria de andar muito antes de encontrar verdade, sabedoria, temor de Deus, virtudes e paz. Mas isso não é razão para desânimo. Quando os discípulos do Senhor saíram dos limites da Terra Santa para difundir o Evangelho, pregaram valores opostos aos costumes de seu tempo, mas venceram. Dos apóstolos de nossos dias, o que o Divino Espírito Santo espera é simplesmente a mesma confiança filial, oração perseverante e disponibilidade. Ele, que é a palavra e sabedoria dos Apóstolos, falará por sua boca e nada Lhe resistirá. 

domingo, 29 de março de 2015

A obediência autêntica

Deus espera de cada um de nós este sacrifício: desapego daquilo que nos desvia do rumo certo, ou de qualquer apreensão que amarre nosso coração a algo que não seja Ele, e docilidade no tocante à sua vontade. Uma vez que nos chamou à santidade, Ele nos quer por inteiro e que estejamos constantemente com o cutelo elevado como Abraão. Se Abraão esteve disposto a entregar Isaac, como não estaremos nós prontos para oferecer aquilo que constitui um obstáculo para a salvação e para nosso relacionamento perfeito com o Senhor? De quanto proveito seria firmarmos um propósito ardoroso de pôr sobre a lenha cada um de nossos caprichos, sobre eles descer a faca e, em seguida, atear-lhes fogo, imolando-os em holocausto a Deus! Desta maneira, como Abraão, nos tornaríamos livres de qualquer apreço desordenado às criaturas.

É comum ouvirmos elogios à fé do santo patriarca, que realmente é digna de todo louvor; mas talvez mais bela ainda seja sua obediência, refletida na do filho Isaac. “A obediência” — afirma Santo Inácio de Loyola — “é um holocausto, no qual o homem inteiro, sem dividir nada de si, se oferece no fogo da caridade a seu Criador e Senhor [...]; é uma resignação inteira de si mesmo, pela qual se despoja todo de si, para ser possuído e governado pela Divina Providência”. A obediência praticada com tal radicalidade obtém-nos a realização das promessas, porque Deus assegura a Abraão: “Juro por Mim mesmo — oráculo do Senhor —, uma vez que agiste deste modo e não Me recusaste teu filho único, Eu te abençoarei e tornarei tão numerosa tua descendência como as estrelas do céu e como as areias da praia do mar. Teus descendentes conquistarão as cidades dos inimigos. Por tua descendência serão abençoadas todas as nações da Terra, porque Me obedeceste” (Gn 22, 1618). Que consolo seria podermos ouvir a voz de Deus dizendo-nos: “Uma vez que recusaste todos os teus apegos, os queimaste e puseste num altar em sacrifício, Eu te abençoarei, porque tu Me obedeceste”. A obediência é das virtudes que mais agradam a Deus; não aquela que se baseia em exterioridades, mas, sim, a que nasce no fundo do coração, como foi a de Abraão: esta é a obediência autêntica.

terça-feira, 6 de janeiro de 2015

Serenidade, filha da confiança inabalável

Ele dormia. As ondas batiam, o vento soprava. Entre os estalos da barca e as vozes dos pescadores, o barulho era ensurdecedor. Mas Ele, impassível, dormia. Os Apóstolos, ainda não habituados ao olhar da fé, preocupavam-se mais em encontrar soluções humanas que em pedir o auxílio divino. E fracassados no seu intento, em vez de se voltarem esperançosos para um milagre vindo da mão divina, repreendem zangados a quem os podia salvar: “Mestre, não Te importa que pereçamos?” (Mc 4, 38).
Oh, atitude tristemente frequente!... A figura do Mestre deitado numa barca que afunda é clássica. Porque também é clássico que o homem, inveteradamente autossuficiente, busque em si, e não em Deus, a solução para seus problemas. Problemas que são, por sua vez, permitidos por Deus para que o homem reconheça que, sem Ele, nada pode fazer (cf. Jo 15, 5). Por isto Jesus, às vezes, finge cochilar...
O orgulho muitas vezes se nega a dar-se por vencido. Há quem veja, entre aqueles que exigiam a Crucifixão de Nosso Senhor, um ímpeto de vingança pelo fato de o Salvador ter-Se negado a lhes conceder a realização de seu sonho messiânico, o qual não consistia em alcançar, nem a glória de Deus, nem a santidade individual, mas benefícios humanos e terrenos, quando não diretamente ilícitos.
Assim, diante da provação, o homem tem dois caminhos: um sobrenatural, de resignação humilde e de esperança confiante, que junta as mãos, e pede a Deus proteção e auxílio; outro, orgulhoso, que vê na dor, destinada a purificá-lo e uni-lo mais ao Pai, uma punição indevida. Nestes tristes casos, sói então acontecer que o homem mundano, de dentro de sua iniquidade, acuse a Deus de injustiça (cf. Ez 18, 25), e por ódio pecaminoso contra a origem de toda justiça, procure matar o Autor da vida.
No caos do mundo atual, enquanto alguns acusam a Deus, outros Lhe devotam uma indiferença sistemática e outros ainda se voltam suplicantes para o mundano, o terreno: política, tecnologia, soluções ambientais, ações sociais... São pescadores na tempestade, afanando-se entre cordas, mastros e velas. Quem hoje se lembra de recorrer filial, ardente e devotamente Àquele que, sereníssimo, parece dormir na barca?
E, entretanto, está Ele constantemente junto a nós, sempre disposto a nos atender, amparar e proteger, desde que recorramos a Ele, com humildade e retidão; acaso ter-se-ia diminuído o poder d’Aquele que curou leprosos, deu a vista a cegos, ressuscitou mortos, expulsou demônios, com uma palavra?

“Uns põem sua força nos carros, outros nos cavalos; nós, porém, a temos no nome do Senhor, nosso Deus”, diz o salmista (Sl 19, 8). Ao contrário do que prega o mundo, têm nas mãos o timão da História os que confiam além de toda esperança, com os olhos postos n’Aquele que afirmou: “Coragem, Eu venci o mundo!” (Jo 16, 33). E é a estes gigantes da fé que verdadeiramente pertence o futuro. Aqueles para quem, como dizia Santa Teresa de Jesus, "só Deus basta".
Revista Arautos do Evangelho