sábado, 18 de fevereiro de 2012

“Ut omnes unum sint”

“Et factum est prælium magnum in Cælo” (Ap 12, 7)
Grande batalha fez-se no Céu. Ao brado de “Non serviam!” — Não servirei! — de Lúcifer se antepôs o de São Miguel Arcanjo: “Quis ut Deus?” — Quem como Deus? Foi esse o primeiro rompimento da unidade desejada e estabelecida pelo Criador na ordem do universo. Em seguida, as relações com Deus foram rompidas em sua harmonia por nossos primeiros pais, na atmosfera primaveril do Paraíso Terrestre. A partir de então, invejas, ciúmes, juízos temerários, murmurações, calúnias, revoltas, etc., passaram a ser frequentes, tornando longínqua aquela união do plano primeiro da Criação.
Só mesmo a Encarnação do Verbo poderia oferecer condições ideais para se reobter, de alguma forma, a felicidade original. O próprio Jesus Cristo manifestaria em Sua oração proferida na Última Ceia: “Para que todos sejam um…” (Jo 17, 21). Derramado seu Preciosíssimo Sangue no Calvário, não tardou para que os primeiros cristãos realizassem esse desejo do Redentor, pois “a multidão dos que haviam crido possuíam um só coração e uma só alma…” (At 4, 32). Solidificou-se, assim, o Corpo Místico de Cristo, uma realidade que passou a ser nota marcantemente frequente na pregação e escritos de São Paulo. Insistiria o Apóstolo em considerar o fato de termos uma só Fé e um só Batismo, de constituirmos um só corpo e, em consequência, a necessidade de haver uma perfeita unidade entre todos.
Ademais, como batizados, temos o privilégio de possuir o Divino Espírito Santo como animador do Corpo Místico, tal qual o faz a alma ao unir e promover a cooperação de todos os membros do corpo humano. Ele é amor, e onde este impera há a unidade, pois quem ama facilmente se esquece de si, para fixar-se unicamente em Deus. Por sua vez, Deus, sendo amor e caridade, empenha-Se em dar-Se e comunicar-Se. Eis o verdadeiro modelo para nós: dar, dar de nós mesmos e para sempre. Aqui está a mais celestial maneira de viver nossa vocação de cristãos.
Porém, infelizmente, são múltiplos e crescentes os pecados contra a caridade e, entre eles, os mais graves são praticados pelos homens que se voltam contra a característica essencial do Corpo Místico de Cristo, ou seja, a unidade. Alguns não passam de sentimentos que escapam do influxo da vontade. Outros, porém, são muito graves e, às vezes, fruto de uma consciência deformada que focaliza somente alguns pontos da moral, mas negligencia a suma importância da unidade do Corpo Místico.
Por amor a Deus e a essa harmonia por Ele querida na ordem da Criação e em Sua Igreja, devemos subestimar os defeitos tão comuns à nossa decaída natureza, superando as rivalidades, dissensões e ressentimentos deles oriundos, pela prática de uma profunda e sobrenatural humildade. Sigamos o conselho do Apóstolo: “Sede um só corpo e um só espírito, assim como fostes chamados pela vossa vocação a uma só esperança” (Ef 4, 4).
Ora, se esse deve ser um dos elementos fundamentais da espiritualidade católica de santidade entre irmãos e irmãs, ou seja, a caridade, muito mais temos obrigação de realizá-la em relação ao nosso Doce Cristo na Terra, Sua Santidade o Papa, seja ele quem for.

quinta-feira, 16 de fevereiro de 2012

O zelo e a dor

Ao iniciar sua vida pública, após ter realizado o primeiro milagre, transmutando a água em vinho nas bodas de Caná, Nosso Senhor Jesus Cristo quis manifestar seu ardoroso zelo pela casa do Pai. Subiu a Jerusalém, onde deparou-Se com vendedores de animais e cambistas de moedas, instalados no átrio de acesso ao Templo. Vendo aquela desordem, tomou-Se de santa cólera e, sem nada de temperamental ou de descontrole de suas paixões — muito pelo contrário, por um movimento de suas heroicas e harmônicas virtudes — empunhou um chicote e expulsou todos os que ali se encontravam, até mesmo os cambistas.
Pareceria a abertura de uma missão que iria culminar num insuperável triunfo. Entretanto, tudo terminaria no alto do Calvário, na ignominiosa morte de Cruz.
Tal paradoxo produz espanto à criatura humana. Que uma das Pessoas da Santíssima Trindade Se encarnasse, de si bem pode causar perplexidade; e muito mais considerando que, para poder sofrer, escolhesse um corpo padecente.
Essas reações são compreensíveis, pois nossa natureza não foi criada com vistas ao sofrimento. Deus, ao tirar do nada os seres inteligentes, destinou-os à felicidade. Ora, a existência da dor causa perplexidade, quer aos anjos em estado de prova, quer aos homens.
Essa perplexidade, porém, poderá ser bem maior diante do oferecimento como vítima expiatória, feito pelo Salvador para redimir o gênero humano, aceitando ser preso, flagelado e crucificado. Como assimilar na tranquilidade a profecia de Isaías, escrita tantos séculos antes: “Era desprezado, era a escória da humanidade, homem das dores, experimentado nos sofrimentos; como aqueles diante dos quais se cobre o rosto, era amaldiçoado, e não fazíamos caso d’Ele” (Is 53, 3)? Ele, que flagelara, foi flagelado. Ele, a quem queriam proclamar rei, viu-Se coroado de espinhos. Ele, que atirara ao solo as mercadorias, caiu três vezes sob o peso da Cruz... Por que, a partir do auge de triunfante zelo, chega-se a este auge de dor, que foi a Paixão?
Em Nosso Senhor Jesus Cristo tudo é perfeito, porque Ele, enquanto Deus, é a perfeição em substância. Em sua própria natureza humana, unida hipostaticamente à Divindade na Pessoa do Verbo, também tudo é perfeito. É nesta perfeição que encontramos virtudes aparentemente opostas, em inteira harmonia: o zelo e a dor.
Do mesmo modo que os vícios, as virtudes são todas coligadas entre si. Quando uma delas chega a ser praticada em grau heroico, eleva consigo as outras. Em Nosso Senhor o firmamento das virtudes é constituído por estrelas que alcançam seu máximo esplendor. Assim sendo, as virtudes, por mais opostas que pareçam à primeira vista, são irmanadas e se revertem umas nas outras. Por aí entendemos o quanto o zelo pela causa de Deus pode ser harmônico, e até mesmo a própria base, do desejo de entregar-Se como vítima expiatória, para a glória do Pai e a salvação das almas. Em Jesus, a bondade e a cólera, como também a dor e o zelo, se unem, se osculam e se requintam.