É noite, noite fria, noite de
inverno. Na cidade agora deserta, as poucas réstias de luz provêm do
aconchegado interior das casas, filtradas por portas e janelas tão bem fechadas
quanto possível à pobreza do lugar.
E pelas ruas vazias vagueia um
casal cansado, à busca de hospedagem... Aparentemente, nada há de mais banal
que esta cena.
Contudo, a jovem grávida está
acompanhada de Anjos belíssimos e invisíveis, enquanto os Céus se debruçam
embevecidos sobre Ela: é a Rainha do universo, “vestida de sol” e “coroada de
doze estrelas” (Ap 12, 1), carregando no seu seio puríssimo — por obra de um milagre,
misterioso e altíssimo — o Sol salvador que, instantes depois, inundaria a
Terra e a História com sua luz redentora.
Esta maravilha, entretanto, os
olhos humanos não a alcançam, porquanto os materialistas daquele tempo
recusaram hospedagem a esta luz: para ela “não havia lugar” (Lc 2, 7) porque
seus corações não eram dignos dela. E, nesta noite, Belém prenunciava
Jerusalém, que não soube reconhecer o tempo em que fora visitada (cf. Lc 19,
44), nem quem podia trazer-lhe a paz (cf. Lc 19, 42), e acabou por crucificar o
Senhor da glória a ela enviado (cf. I Cor 2, 8).
Assim, há os que, olhando para
o Rei dos reis feito Menino, ofuscados pela aparência humilde e despojada, veem
n’Ele apenas o filho do carpinteiro de Nazaré. Contudo, há também quem, olhando
para o pobre, mas majestoso, filho de José, extasiado pela sua inocência e
sabedoria, reconhece n’Ele o Senhor dos senhores. O mesmo Menino, vestindo as
mesmas roupas, apresentando o mesmo porte, utilizando a
mesma linguagem, suscita entretanto a seu respeito duas visualizações diversas,
antagônicas e — quantas vezes! — em luta.
Na raiz mais profunda dessa
adversidade está o embate entre dois campos incompatíveis: a cidade do mundo e
a cidade de Deus, como tão bem descreve Santo Agostinho. E é em função dessa
oposição que o divino Bebê de Belém, Juiz do universo, colocará uns à sua
direita e outros à esquerda (cf. Mt 25, 33).
Assim, duas visualizações, duas
mentalidades, dois mundos, duas eternidades se confrontam continuamente, quase
sempre de modo velado, e Deus permite que as almas pertencentes a ambos os
lados cresçam juntas (cf. Mt 13, 24-30), pois não há glória sem vitória, e não
há vitória sem luta.
Pelos olhos da fé, vemos nas
ruas de Belém caminhar uma Virgem, suave e recolhida. N’Ela, esperando para
nascer, o Criador e Redentor — que tudo sabe e tudo pode — tem em suas mãos
nossa felicidade e nossa paz. Sua chegada traz para nós a alegria do Natal,
como mero prenúncio do gáudio da salvação eterna e definitiva. Ele nos convida
constantemente a conquistar a glória celeste, antegozada ainda nesta Terra,
pela alegria sincera da alma, por quem caminha seguindo seus sagrados passos.
Alegria que entrava no mundo, no rastro de dois humildes viajantes que, rejeitados,
cruzavam uma pequenina cidade, em fria noite de inverno.
Nenhum comentário:
Postar um comentário